A certo passo do seu Traité dês seigneuries (1608), Charles Loyseau diz o seguintesobre a importância histórica do Parlement de Paris para a preservação da unidade da coroa francesa: ‘É necessário reconhecer que foi o Parlement que nos evitou, em França, sermos acantonados e desmembrados como em Itália e na Alemanha,foi ele que manteve a integridade do reino.’Esta maneira de pensar o desenvolvimento político da monarquia francesa a partir do seu tribunal soberano deve-se em parte ao facto de Loyseau ter iniciado a sua carreira de burocrata como advogado no Parlement, experiência que certamente moldou as suas preferências ideológicas e condicionou a sua lealdade corporativa. Mas ela explica-se sobretudo pela necessidade de justificar e de defender as prerrogativas de uma instituição que, na França de Loyseau e do primeiro rei Bourbon, se via duplamente ameaçada pela desmoralização inerente à venalidade e pela subalternização institucional imposta pelo absolutismo.O elogio do Parlement de Paris que tece Loyseau não é, por isso, a constatação de um triunfo, mas a recordação de um tempo perdido, correspondendo grosso modo à dinastia dos reis Valois entre o primeiro quartel do século XIV e o último do século XVI, em que a teoria e a prática do poder régio dependiamem larga medida da influênciapolítica e intelectual duma instituição singular, a meio caminho entre tribunal supremo e assembleia representativa.

O projecto de investigação que será apresentado em linhas gerais nesta comunicação propõe-se estudar essa influência a partir da reflexão jurídica e da jurisprudência do Parlement de Paris sobre a dimensão pública do poder régio e sobre a organização da sociedade: por outras palavras (e simplificando), sobre a distinção entre a pessoa do rei e a função do rei, entre interesse público e privado; sobre a teoria, a estrutura e o funcionamento do governo; sobre problemas de responsabilidade colectiva e de partilha de recursos comuns; enfim, sobre a forma e a natureza do Estado monárquico e a sua interacção com a sociedade e com o complexo de poderes e de interesses que a compõem. As constelações de questões particulares que compõem estas questões gerais são fruto das tensões,conflitos e mutaçõesque permeiam a sociedade francesa, na sua extrema variedade e complexidade, amplificadas e intensificadaspelo problema central da fragilidade jurídica da legitimidade sucessória dosValois. A preservação da integridade do reino a que se refere Loyseau é o produto acidental da convergência incessante destas questões para o Parlement de Parise das soluções e compromissos através dos quais este procurou resolvê-las. Para compreender este processo de construção do poder público em França nos finais da Idade Média, o funcionamento do Parlement de Paris será analisado a partir de três dimensões essenciais da sua influênciasobre a organização política do reino, que serão discutidas e problematizadas nesta comunicação: 1) a sua influência jurisdicional e política, enquanto tribunal soberano capaz de transformar as relações de força entre poderes e o peso destes sobre a sociedade; 2) a sua influência simbólica, enquanto órgão representativo do grupo dominante da sociedade francesa e, ao mesmo tempo,parscorporisregis e manifestação tangível da coroa e da autoridade monárquica; 3) e a sua influência intelectual, enquanto espaço privilegiado de reflexão sobre a teoria e a prática do poder.

Nota biográfica
André Vitória é investigador na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, membro do Instituto de Estudos Medievais e do Laboratoire de MédiévistiqueOccidentale de Paris (Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). O seu trabalho de investigação tem-se dedicadoàinteracção entre a teoria e a prática do direito e do poder no final da Idade Média, incidindo actualmente sobre a contribuição do Parlement de Paris para a teorização e a organização do poder político em França na segunda metade do século XV.Principais publicações: ‘Bad Cases andWorseLawyers: Patternsof Legal Expertisein Medieval Portuguese Court Records, c. 1200–1400’, Open LibraryofHumanities 5/1 (2019) DOI: https://doi.org/10.16995/olh.380; ‘Late Medieval Polities and the Problem of Corruption: France, England and Portugal, 1250-1500’, in Anticorruption in History: From Antiquity to the Modern Era, ed. R. Kroeze, A. Vitória e G.Geltner (Oxford, 2018) 77-89; ‘The Season of Show and Tell, Or How Afonso IV Redrew the Jurisdictional Map of Fourteenth-Century Portugal’, in Medieval Studies in Honour of Peter Linehan, ed. F. J. Hernández, R. Sánchez Ameijeiras e E. Falque (Florença, 2018) 449-92; ‘Two Weddings and a Lawsuit: Marriage Litigation in Fourteenth-Century Portugal’, The Journal of Ecclesiastical History 67/3 (2016) 513-67; ‘A little known version of Oldradus de Ponte’s consilium no. 83?’, Initium: Revistacatalanad’història del dret 17 (2012) 169-207.