Por Delmira Espada Custódio e Maria Adelaide Miranda, investigadoras do IEM|FCSH-UNL

Muito recentemente localizámos, numa colecção particular, um Livro de Horas inédito, manuscrito e iluminado, de grande interesse para a história da arte e da cultura portuguesa e, em particular, para a história da iluminura e das navegações no reinado de D. João II. Desde logo nos chamou a atenção o seu calendário, muito diferente daqueles que habitualmente se encontram neste género de obras. O interesse foi crescendo à media que os nossos olhos percorriam o códice, pois, logo após o calendário, deparámo-nos com diversos fólios escritos em português, o que constitui, daquilo que até à data se conhece, uma raridade bibliográfica de incontornável valor histórico e artístico.

Foi, porém, a leitura desse mesmo texto que evidenciou a real importância do códice que tínhamos entre mãos, revelando, em duas breves linhas, tratar-se de uma encomenda régia, executada por um importante prelado castelhano ao serviço da corte portuguesa, como o texto claramente explicita: “Composto pelo lece[n]ciado calcadilha per mandado del rei ao meridiano e ladeza de lixboa o anno de 1483”. Ficamos deste modo a saber que o livro foi uma encomenda de D. João II (1455-1495), a um dos mais importantes astrónomos da corte portuguesa, o castelhano D. Diogo Ortiz de Villegas († 1519), muitas vezes designado por Calçadilha. Este respeitado teólogo chegou a Portugal em 1475, ainda durante o reinado de Afonso V, como confessor da princesa D. Joana, a Excelente Senhora, na sequência do conflito de Toro que opôs D. Afonso V aos Reis Católicos, Fernando e Isabel, e viria a ser uma figura de destaque nos reinados dos seus sucessores, D. João II e D. Manuel I.

Trata-se de um códice de pequena dimensão (115 x 80 mm), executado em velino de diferentes espessuras, com 206 fólios inumerados, agrupados em dezoito cadernos de constituição diversa e irregular. Encontra-se bastante completo e bem preservado, conservando vinte e duas iluminuras de página plena, das vinte e três que o códice originalmente continha. O texto, em latim e português, disposto numa única coluna de 15 linhas, é escrito a negro, com rubricas a vermelho, e sugere ter sido executado, maioritariamente, por um único escriba, ainda que tenhamos que admitir a presença de dois iluminadores. As margens, iluminadas com acantos estilizados, azuis e amarelos, e elementos da flora representados com algum realismo – amoras silvestres, morangos, margaridas, dentes de leão, entre outros de mais difícil identificação -, são completas, envolvendo o tema iconográfico e a coluna de texto do fólio adjacente. As partes principais dos textos – designadas por secções – são assinaladas pelas iluminuras de página plena, organizadas em duplo fólio, e as subdivisões são hierarquizadas com iniciais ornadas a 2,4,5 e 6 espaços de regramento, iniciais filigranadas a um espaço, iniciais caligrafadas (mais raras), rúbricas, fins-de-linha e, muito pontualmente, caldeirões. Um estudo artístico/iconográfico dos temas relacionados com o que se conserva da pintura e iluminura desta época em Portugal pode tornar-se num elemento chave para caracterizar as artes da cor do nosso país em contexto internacional.

As marcas de propriedade que o códice conserva dão-nos conta de dois outros proprietários, a saber: José Jacinto Tavares († 9 de Junho de 1863), prior na Igreja de Santa Isabel, comendador e deputado da nação portuguesa, e o abade italiano, D. Caetano Cav. Frascarelli († depois de 1868), cavaleiro da Real Ordem Militar de Cristo em Portugal, membro da Nunciatura Apostólica no reinado de D. Maria II, e autor de diversas obras, entre as quais se destaca, pela sua relação com Portugal, Inscriptiones regum Lusitanorum, publicada em 1850, e Iscrizioni portoghesi che esistono in diversi luoghi di Roma, de 1868.

O estudo detalhado deste exemplo notável do espírito humanista da corte joanina, que tencionamos publicar muito em breve e de que deixamos aqui um pequeno esboço, conta com a participação de uma equipa alargada de investigadores – Aires Augusto Nascimento (CEC|FLUL), Carlos Manuel Pereira Fontes, Delmira Espada Custódio (IEM|FCSH-UNL), Henrique Leitão (CIUHCT|UL), Horácio Augusto Peixeiro (APH), José Madruga Carvalho (CIUHCT|UL), Josefina Planas Badenas (Universitat de Lleida) e Maria Adelaide Miranda (IEM|FCSH-UNL) -, que, tal como nós, se deixaram contagiar pela alegria que o interesse científico de tão importante e inesperada descoberta despertou em nós.

O artigo no suplemento Ípsilon do jornal Público pode ser consultado aqui e aqui.