As primeiras manifestações da produção literária em português correspondem a textos em verso, compostos em geral por poetas cultos – trovadores – que conviviam em várias cortes régias e senhoriais da Península Ibérica, em particular no Noroeste da Península. As composições – cantigas –, que circularam certamente em modo avulso, foram preservadas através de livros de poesia cancioneiros –, entre recolha e antologia, a exemplo do que ocorria no ambiente românico (chansonniers, cançoners, canzonieri, livros de canções).

Os estudos críticos, relativos à tradição manuscrita da produção galego-portuguesa, procedem dos estudos de C. Michaëlis (1904), que se pronunciou sobre a transmissão textual das cantigas e sobre o perfil sociocultural de cada um dos autores. As relações de parentesco entre os testemunhos, relativos à tradição da lírica galego-portuguesa, permitiram a G. Tavani (1967) fixar um novo stemma, que tem sido reproduzido e fundamentado sucessivamente em vários dos seus estudos. Assim se assumiu um quadro para a construção de uma ‘grande recolha colectiva’ um librum magnum, confeccionado talvez no ambiente cortesão de D. Pedro (1287-1354), Conde de Barcelos, que teria, depois, favorecido a (re)transcrição dos vários cancioneiros conhecidos (Ajuda, Colocci-Brancuti e Vaticana).

A análise técnica e textual das cantigas tem, de algum modo, permitido a reconstituição do corpus poético medieval e o reconhecimento de vários trovadores no contexto social, em que se moviam, tem proporcionado melhor enquadramento histórico e melhor compreensão sobre os atores da notoriedade deste movimento literário, que tinha já alcançado sucesso nos ambientes cortesãos galo-românicos.

Tendo em consideração o exame da conjuntura material dos cancioneiros galego-portugueses, procurarei, aqui, refletir sobre alguns casos emblemáticos, resultantes da colocação dos textos nas coleções coletivas, como no prestígio que os compiladores concederam à linhagem dos autores. Quem compunha? Quem escrevia? Como se escrevia, como se transcrevia, como se lê.

Sobre a autora
Maria Ana Ramos formou-se na Universidade Clássica de Lisboa na Faculdade de Letras (Licenciatura e Doutoramento), onde ensinou principalmente História da Língua Portuguesa durante vários anos. Após uma especialização em Filologia Românica na Universidade de Roma, na La Sapienza (três anos), trabalha atualmente no Romanisches Seminar na Universidade de Zurique, onde ensina Língua, Linguística, Literatura e Filologia portuguesas desde 1986 e onde obteve também a Habilitação (Agregação) em Filologia Românica e a direção da Cátedra Carlos de Oliveira (Camões IP).

Os grandes domínios da sua investigação concentram-se na história da lírica galego-portuguesa, nas variações textuais da sua produção, nos processos de transmissão e na recepção medieval e quatrocentista de coleções poéticas coletivas, em particular no que toca ao Cancioneiro de Ajuda, códice sobre o qual desenvolveu um trabalho aprofundado, tendo publicado, para além do ensaio, que acompanha a edição fac-similada deste Cancioneiro (1994) e a reimpressão da edição diplomática (2007), um estudo que apreende a eloquência dos espaços em branco neste manuscrito dos finais do século XIII (1986), o que lhe permitiu uma significativa reflexão sobre a especificidade da previsão musical para as fiindas na lírica galego-portuguesa (1984) e sobre o sentido da separação silábica e intervocabular de alguns termos na dependência da notação neumática prevista no manuscrito (1995). Já em 2008, publicou um amplo estudo com base no exame codicológico, paleográfico e grafemático do manuscrito (Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita).

Para além deste domínio essencial, interessou-se ainda por vários outros domínios da literatura medieval, entre os quais, as formas narrativas breves, os aspetos linguísticos do teatro de Gil Vicente, com o exame de uma língua artificial durante o século XVI, a língua dos ciganos (2003), tendo ainda procurado estudar o período literário em França do princípe Afonso, le Boulonnais, futuro Afonso III de Portugal, responsável pela dinâmica cultural da corte portuguesa (2003, 2005, 2011, 2013).